A Câmara dos Deputados aprovou, no último dia 10/09, regime de urgência para o Projeto de Lei (PL) 2762/24, que institui a Política Nacional de Cuidados no Brasil. Com a decisão, a tramitação ganha celeridade no Legislativo.
De acordo com a proposta em curso no Congresso, as políticas públicas dividirão a responsabilidade da provisão de cuidados com as famílias, iniciativa privada e sociedade civil.
Trata-se de uma mudança significativa: historicamente, o Estado esteve ausente deste campo, deixando a responsabilidade dos cuidados para os indivíduos e sobrecarregando, sobretudo, as mulheres. São elas as principais responsáveis pela atenção com crianças pequenas, idosos ou pessoas com deficiência no âmbito familiar.
O cuidado tem cara, sexo, cor e idade. Quem cuida, em geral, são mulheres, e majoritariamente negras.
“O cuidado tem cara, sexo, cor e idade. Quem cuida, em geral, são mulheres, e majoritariamente negras. São elas que predominam seja no cuidado remunerado, seja no cuidado não-remunerado, aquele que faz parte das obrigações familiares”, detalha a pesquisadora Ana Amélia Camarano, organizadora do livro Cuidar, Verbo Transitivo: caminhos para a provisão de cuidados no Brasil, publicado em 2023 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). “Para agravar a situação, a oferta de serviços públicos de cuidados no Brasil é reduzida”.
A aprovação da proposta é considerada prioridade para a Bancada Feminina da Câmara, grupo suprapartidário que inclui todas as deputadas.
O que é a Política Nacional de Cuidados
A Política Nacional de Cuidados foi desenvolvida ao longo do último ano em colaboração com 20 ministérios. Além das próprias cuidadoras, a centralidade da Política Nacional de Cuidados é garantir direitos para crianças pequenas, pessoas idosas e com deficiência.
O Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), responsável pela elaboração do projeto de lei, destaca que o objetivo principal da proposta é inserir o tema na agenda pública como uma política de Estado.
“Ela visa promover uma nova organização social dos cuidados, com responsabilidades compartilhadas entre famílias, Estado, mercado e comunidades, além de homens e mulheres”, explica Luana Pinheiro, Diretora de Economia do Cuidado da pasta.
“A Política Nacional define o cuidado como direito, trabalho e necessidade universal”, detalha Luana Pinheiro
“A política define o cuidado como direito, trabalho e necessidade universal, buscando garantir o atendimento das necessidades de quem demanda cuidados. E, simultaneamente, apoiar aqueles que oferecem o cuidado”, detalha Luana, que é doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB).
Entre as principais diretrizes da política, estão a atuação permanente, integrada e articulada de diferentes políticas públicas e áreas como a da Saúde, Assistência Social, Direitos Humanos, Educação e Trabalho. O objetivo é concretizar o acesso ao cuidado ao longo da vida. Além disso, o PL também menciona a necessidade de territorialização e descentralização dos serviços públicos ofertados a quem cuida e quem é cuidado.
Políticas de Cuidados nos municípios
Embora ainda esteja em análise, a iniciativa federal já inspira novas legislações nos municípios. De acordo com o MDS, a política deverá ser adaptada à realidade local, com elaboração de diagnóstico da organização social dos cuidados e espaço para ajuste das ações conforme as necessidades.
Belo Horizonte (MG) aprovou sua Política Municipal de Cuidados em 14/08, levando para o território da capital mineira diretrizes para assegurar o Direito ao Cuidado a todos, além de promover o apoio e assistência às pessoas que exercem a atividade. É a primeira capital brasileira a definir uma política pública específica para garantir o Direito ao Cuidado.
Aprovado pela Câmara dos Vereadores por unanimidade, a Política Municipal de Cuidados nasceu do Projeto de Lei (PL) 893/2024, proposto pelo mandato coletivo feminista Gabinetona, representado pela vereadora Cida Falabella (PSOL).
Com foco nas crianças pequenas, pessoas idosas e com deficiência, a política procura universalizar o acesso ao Sistema Municipal de Cuidado (SMC), uma rede de proteção social composta por serviços, programas, projetos, benefícios e atividades voltadas ao atendimento às demandas de cuidado.
Para a elaboração da política municipal, o mandato acompanhou iniciativas já existentes ou em andamento, como o Grupo de Trabalho Interministerial criado para a construção da Política Nacional de Cuidados.
“Em Belo Horizonte, vários fatores colocam o cuidado na centralidade do debate. Após a pandemia, a pauta se tornou mais intensa, mas sempre foi defendida pelas mulheres. A partir de 2023, houve também o debate nacional. É algo que se dá também pelo fato de existirem mulheres gestoras que enxergam as necessidades da maioria da população”, aponta Cida.
Com a regulamentação da Política Municipal de Cuidados, a parlamentar também pretende que haja uma proximidade e valorização dos territórios de cuidado, formados por iniciativas voltadas à atenção com quem cuida.
“Esse tema precisa ser debatido como um direito. É fundamental também a questão do laço territorial, reconhecendo os territórios de cuidados cuja base é comunitária e autônoma. Esse é um passo que ainda precisamos alcançar com a regulamentação”, detalha.
“O cuidado precisa ser debatido como direito. É fundamental também reconhecer os territórios de cuidados”, diz Cida Falabella
Há registros de iniciativas também em Florianópolis (SC) e em Belém (PA). Na capital paraense, o governo instalou, em 07/08, o Comitê Municipal para Política de Cuidados, com o objetivo de elaborar diretrizes para o tema. O comitê funcionará de forma colegiada, com representantes da sociedade civil e da gestão municipal.
Como estão as políticas de cuidados na América Latina?
Além do Brasil, políticas públicas voltadas ao cuidado têm ganhado espaço em outros países na última década.
“A centralidade do cuidado tem sido progressivamente incorporada às agendas públicas da região, embora de forma desigual, como resultado das contribuições da economia feminista e de anos de trabalho incansável das organizações e movimentos de mulheres
e feministas para destacar a reorganização social do cuidado como chave para aspirar a
sociedades mais igualitárias e inclusivas”, destacou a publicação Rumo à
construção de sistemas integrais de cuidados na América Latina e no Caribe, organizado pela ONU Mulheres em 2021.
Um exemplo é o Uruguai. O país implementou em 2015 o Sistema Nacional Integrado de Cuidados da América Latina. A lei que garantiu a inovação nasceu da sociedade civil e estabelece um modelo corresponsável que envolva as famílias, o Estado, a comunidade e o
mercado na prestação de cuidados àqueles que deles necessitam. Além disso, consagra o cuidado como um direito universal, e a política tem a igualdade de gênero como um tema transversal.
Em 2020 foi a vez da Colômbia, com as “Manzanas del Cuidado”, equipamento público dedicado à promoção do cuidado às mulheres cuidadoras na capital Bogotá. As atividades vão de aulas de yoga à orientações jurídicas, passando por cursos e iniciativas educacionais.
Em 2021, a Argentina reconheceu formalmente o cuidado materno como trabalho, permitindo que mais de 155 mil mulheres conseguissem se aposentar após contar como tempo de trabalho o período em que se dedicaram à criação dos filhos.
Como combater as desigualdades nos cuidados
As diferentes iniciativas buscam atuar em um desafio complexo, que envolve questões raciais e de gênero.
No Brasil, o cuidado recai majoritariamente sobre as mulheres. Em média, elas gastam 21 horas por semana com atividades domésticas e de cuidados. É o dobro dos homens, que passam 11 horas nas mesmas funções. A situação é ainda mais grave no caso das mulheres negras: são 22 horas semanais em tais ocupações, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2022.
“No Brasil, a maioria das mulheres que exercem o trabalho de cuidado são informais. Assim, é negado a elas direitos básicos como o acesso à Saúde, Educação, moradia de qualidade e aposentadoria”, explica Soledad Maria, coordenadora do projeto LA Cuida (Laboratório de Ativação da Economia do Cuidado na América Latina), do Instituto Procomum.
Para Soledad, que também é especialista em Economias Populares e Feministas pelo Conselho Latino Americano de Ciências Sociais (CLACSO), a desigualdade no cuidado tem raízes no período colonial e escravagista, quando as mulheres negras eram usadas como força de trabalho agrícola e também para a reprodução da força de trabalho escravizada.
“No Brasil, a maioria das mulheres que exercem o trabalho de cuidado são informais. Assim, é negado a elas direitos básicos”, explica Soledad Mari
Para tornar o trabalho de cuidados menos desigual, a Política de Cuidados deve tirar essa sobrecarga da realidade das mulheres brasileiras.
Além de garantir direitos para quem cuida e para quem precisa de cuidado, disponibilizar serviços públicos para o cuidado de idosos e ampliar a criação de creches são iniciativas listadas pela especialista. A promoção da equidade salarial entre homens e mulheres, bem como a ampliação da Licença Paternidade também são ações que ajudam a reduzir a desigualdade no trabalho de cuidados.
“São inúmeras as possibilidades, tanto na esfera pública, quanto na privada”, defende Soledad.
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